A implementação da lei 10.639/2003 representa um
grande desafio para o universo escolar, tal tarefa implica na
apropriação de conhecimentos multidisciplinares sobre a história e
cultura de uma África marcada pela pluralidade de seus povos.
Na perspectiva de afastar uma visão preconceituosa e de trazer elementos que contribuam para ampliar o conhecimento sobre os povos, as culturas e civilizações do continente africano é que a formação “Educação, Relações Raciais e Direitos Humanos” contou com o debate sobre os Valores Civilizatórios em sociedades negro-africanas, promovido pelo professor doutor em História da África, Muryatan Santana Barbosa e pelo professor doutor em Sociologia, Acácio Almeida.
O ponto de partida de Muryatan foi a reflexão sobre o uso do termo África, imposto a partir da dominação romana. Inicialmente este vocábulo designava o litoral norte do continente, sendo aplicado a sua totalidade desde o fim do século I antes da Era Cristã. Ele comenta que a origem da palavra África é difícil de ser elucidada e traz algumas das versões plausíveis, em sua opinião:
Todavia, nas últimas três décadas – segundo o Muryatan – há um movimento de crítica do emprego da palavra África no singular e uma difusão do emprego do termo no plural “Áfricas”, no sentido de assegurar a representação da diversidade dos valores civilizatórios do continente.
Neste ponto, conforme Muryatan, se faz necessário definir o conceito de civilização que orienta os debates feitos no século XX, que tendem a tratá-lo como complexo cultural. Assim sendo, ao falar da civilização chinesa ou iorubá, por exemplo, se faz referência aos sistemas históricos que construíram os complexos culturais destas sociedades.
Para Muryatan, tal concepção é fundamental para que a pesquisa e o ensino de História da África não caiam no lugar comum do culturalismo, próprio das populações negras e indígenas na sociedade brasileira, com sua forma peculiar de racismo ligada ao ideal de branqueamento e a miscigenação.
“A história da África no Brasil tem que se formar para além de narrativas culturalistas sobre o africano ou o negro brasileiro. Mais do que a cultura, é preciso mostrar o caráter civilizatório da presença do negro no país e isto só se faz por meio do resgate histórico da África. No racismo à brasileira, a cultura popular é o lugar do negro e do indígena. Então, a nossa visão tem que subverter esta realidade e historicizar a África é o caminho. A África não pode ficar no lugar do mágico, foram os africanos que civilizaram o Brasil com sua imensa capacidade milenar de adequação socioambiental no clima tropical. Foram seus conhecimentos e dos ameríndios de biodiversidade tropical, de medicina, veterinária, metalurgia e agronomia que viabilizaram a constituição do Brasil e isso deve ganhar evidência.”, destaca.
Nesse sentido, o professor doutor Acácio Almeida ressalta as contribuições do economista erge Latouche, que pertenceu a um grupo fundado em 1982, cuja sigla era M.A.U.S.S. (Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais), nome inspirado em um importante antropólogo francês chamado Marcel Mauss.
Os intelectuais que compunham esse grupo defendiam a teoria do decrescimento, que entre outras coisas, buscavam a ruptura com as vozes dominantes da ideologia do crescimento. Eles sugerem, por exemplo, o cálculo das riquezas de um país por outros parâmetros que não acúmulo de dinheiro, que possibilitassem a sustentabilidade dos recursos, e que respeitassem os ecossistemas do planeta.
Em 2005, Latouche apresentou um texto com o título “A África pode contribuir para resolver os problemas do Ocidente?”, chamando a atenção, de acordo com Acácio, para “uma doença que nos impede de ver outra doença”. Em outras palavras, Acácio comenta que estamos tão preocupados em ajudar a África que ficamos cegos para pensar na outra possibilidade.
Por isto, em conformidade com Muryatan, Acácio convida aos presentes a retomar os processos históricos que resultaram na imagem dessa África definida por ele como África Objeto, das misérias, das doenças. Como forma de alcançar o que denomina África Sujeito, uma África profunda, na qual residem valores como “dar, receber e distribuir” responsáveis pela manutenção das estruturas comunitárias e pela proteção social.
“Eu morei na Costa do Marfim, e este não é um país com o PIB do Brasil. Mas não tem tanta gente morando na rua. Afinal, todo mundo que mora na rua tem um parente, certo? Porque eles não levam para sua casa esses indivíduos que por algum motivo chegaram a esta situação? Por que a nossa noção de família é estritamente nuclear? É justamente nessas questões que a África tem muito a nos ajudar. O que é possível desde que façamos a leitura de outra África, desde que o conteúdo não seja esse conteúdo frio que vem sendo levado para a sala de aula, mas que possamos descobrir o porquê muitos africanos, como alardeam os noticiários, vivem com menos de um dólar e ainda não estão todos mortos. Certamente porque existe alguma coisa que nós não conhecemos e essa alguma coisa é o que faz circular bens de primeira importância e torna a vida possível. E isso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nenhum nunca alcançará, afinal tal índice é mais uma ferramenta baseada em um desenvolvimento que em nada dialoga com a realidade africana, marcada pela proteção social, pelo dar, receber e distribuir”, conclui.
É preciso reeducar o olhar sobre a África
Em sua explanação, o professor Acácio Almeida compartilha um conto do escritor costa-marfiniano, Ahmadou Kouroma, de uma sociedade em que o grupo se reconhece por dois elementos importantes: primeiro porque todos andam sem roupas e segundo porque são os melhores lutadores.
Embora o autor não diga, Acácio acredita que esta comunidade esteja localizada na África do Oeste, muito provavelmente no Senegal. Nesta sociedade de guerreiros, tinha um lutador que após inúmeros desafios, venceu a todos da região, até não ter mais quem enfrentar. É quando decide ir para a França que está em guerra com a Alemanha. E chegando lá, dizem que no primeiro dia, segundo dia, terceiro dia pouco acontece, escondidos em suas trincheiras, franceses e alemães pouco fazem. Cansado de tudo aquilo e enfurecido, ele parte para cima dos inimigos e nessa investida, franceses e alemães também partem para o combate. A luta segue por dias e a França se consagra vencedora.
Essa história é a descrição da Primeira Guerra Mundial e esse lutador por ter sido protagonista de um ato heroico é condecorado e recebe uma medalha. E então, surge o problema: ele não usa roupa. Esse é o elemento fundador para discussão entre tradição e modernidade, de acordo com Acácio, “deixar de ser aquilo que eu sou para passar a ser aquilo que o outro é? Para poder expor aquilo que o outro tem da cultura dele? Ou dizer ‘não quero isso e continuarei sendo o que sou’?” Mas como diz Ahmadou, ao finalizar: “era um homem, e os homens adoram medalhas”. Com esta história, Acácio levanta o debate sobre tradição e modernidade, quase sempre tratadas como questões excludentes. Quando na verdade, em sua opinião, “a tradição vive da modernidade, se alimenta da modernidade e por si só é a modernidade”.
Neste contexto, Muryatan Barbosa comenta que lidar com as populações tradicionais como atrasadas é comum porque o olhar ocidental sobre evolução e desenvolvimento é extremamente colonizado – quando a tradição está repleta de tecnologias e modernidade. Ser atrasado ou não, em sua concepção, implica na capacidade que uma sociedade tem de reproduzir a vida com qualidade para seus indivíduos a partir da sua capacidade de adequação ao meio, sem contar com a exploração de outros grupos ou nações para cumprir tal tarefa (e assim as civilizações africanas não eram em nada atrasadas, como diziam os colonizadores).
Acácio traz outro exemplo para pensar sobre o maniqueísmo tão presente nas análises quando o tema são os povos e culturas africanas. Ele comenta da apreciação de dados como a porcentagem de crianças alfabetizadas na África, por exemplo. O cerne central para ele é definir qual a lógica adotada para falar de alfabetização em sociedades da oralidade.
“Não podemos adotar a lógica da escrita como a única lógica possível para a transmissão do conhecimento. Por exemplo, um menino que vai aprender a tecer um Kente. O tecido que sai do ventre do tecelão é a sua palavra criadora, são as reconstruções feitas pela palavra do pré-existente, o tecido é entendido como palavra. Ele não vai apenas conhecer as técnicas do tear, vai também aprender todas as disciplinas: biologia, para ver quais são os tipos de algodão, como se planta; matemática, para identificar a distância entre uma cova e outra para o algodão; linguística, para saber quais são os nomes dos diferentes algodões. É um ensino muito mais completo, presente na manifestação do poder criador como um todo. Como afirma Fábio Leite, a capacidade de comunicação possui essência diversa daquela proposta pela escrita, elemento apenas cultural e estrangeiro à natureza e à dimensão mais profunda do homem.”, ressalta.
Na perspectiva de afastar uma visão preconceituosa e de trazer elementos que contribuam para ampliar o conhecimento sobre os povos, as culturas e civilizações do continente africano é que a formação “Educação, Relações Raciais e Direitos Humanos” contou com o debate sobre os Valores Civilizatórios em sociedades negro-africanas, promovido pelo professor doutor em História da África, Muryatan Santana Barbosa e pelo professor doutor em Sociologia, Acácio Almeida.
O ponto de partida de Muryatan foi a reflexão sobre o uso do termo África, imposto a partir da dominação romana. Inicialmente este vocábulo designava o litoral norte do continente, sendo aplicado a sua totalidade desde o fim do século I antes da Era Cristã. Ele comenta que a origem da palavra África é difícil de ser elucidada e traz algumas das versões plausíveis, em sua opinião:
- A palavra África teria vindo do nome de um povo (berbere) situado ao sul de Cartago: os Afrig. De onde Afriga ou Africa para designar a região dos Afrig;
- Outra etimologia da palavra África é retirada de dois termos fenícios, um dos quais significa espiga, símbolo da fertilidade dessa região, e o outro, Pharikia, região das frutas;
- A palavra África seria derivada do latim aprica (ensolarado) ou do grego apriké (isento de frio);
- Outra origem poderia ser a raiz fenícia faraga, que exprime a ideia de separação, de diáspora. Essa mesma raiz é encontrada em certas línguas africanas (bambara);
- Em sânscrito e hindi, a raiz apara ou africa designa o que, no plano geográfico, está situado “depois”, ou seja, o Ocidente. A África é um continente ocidental;
- Uma tradição histórica retomada por Leão, o Africano, diz que um chefe iemenita chamado Africus teria invadido a África do Norte no segundo milênio antes da Era Cristã e fundado uma cidade chamada Afrikyah. Mas é mais provável que o termo árabe Afriqiyah seja a transliteração árabe da palavra África.
Todavia, nas últimas três décadas – segundo o Muryatan – há um movimento de crítica do emprego da palavra África no singular e uma difusão do emprego do termo no plural “Áfricas”, no sentido de assegurar a representação da diversidade dos valores civilizatórios do continente.
Neste ponto, conforme Muryatan, se faz necessário definir o conceito de civilização que orienta os debates feitos no século XX, que tendem a tratá-lo como complexo cultural. Assim sendo, ao falar da civilização chinesa ou iorubá, por exemplo, se faz referência aos sistemas históricos que construíram os complexos culturais destas sociedades.
Para Muryatan, tal concepção é fundamental para que a pesquisa e o ensino de História da África não caiam no lugar comum do culturalismo, próprio das populações negras e indígenas na sociedade brasileira, com sua forma peculiar de racismo ligada ao ideal de branqueamento e a miscigenação.
“A história da África no Brasil tem que se formar para além de narrativas culturalistas sobre o africano ou o negro brasileiro. Mais do que a cultura, é preciso mostrar o caráter civilizatório da presença do negro no país e isto só se faz por meio do resgate histórico da África. No racismo à brasileira, a cultura popular é o lugar do negro e do indígena. Então, a nossa visão tem que subverter esta realidade e historicizar a África é o caminho. A África não pode ficar no lugar do mágico, foram os africanos que civilizaram o Brasil com sua imensa capacidade milenar de adequação socioambiental no clima tropical. Foram seus conhecimentos e dos ameríndios de biodiversidade tropical, de medicina, veterinária, metalurgia e agronomia que viabilizaram a constituição do Brasil e isso deve ganhar evidência.”, destaca.
Nesse sentido, o professor doutor Acácio Almeida ressalta as contribuições do economista erge Latouche, que pertenceu a um grupo fundado em 1982, cuja sigla era M.A.U.S.S. (Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais), nome inspirado em um importante antropólogo francês chamado Marcel Mauss.
Os intelectuais que compunham esse grupo defendiam a teoria do decrescimento, que entre outras coisas, buscavam a ruptura com as vozes dominantes da ideologia do crescimento. Eles sugerem, por exemplo, o cálculo das riquezas de um país por outros parâmetros que não acúmulo de dinheiro, que possibilitassem a sustentabilidade dos recursos, e que respeitassem os ecossistemas do planeta.
Em 2005, Latouche apresentou um texto com o título “A África pode contribuir para resolver os problemas do Ocidente?”, chamando a atenção, de acordo com Acácio, para “uma doença que nos impede de ver outra doença”. Em outras palavras, Acácio comenta que estamos tão preocupados em ajudar a África que ficamos cegos para pensar na outra possibilidade.
Por isto, em conformidade com Muryatan, Acácio convida aos presentes a retomar os processos históricos que resultaram na imagem dessa África definida por ele como África Objeto, das misérias, das doenças. Como forma de alcançar o que denomina África Sujeito, uma África profunda, na qual residem valores como “dar, receber e distribuir” responsáveis pela manutenção das estruturas comunitárias e pela proteção social.
“Eu morei na Costa do Marfim, e este não é um país com o PIB do Brasil. Mas não tem tanta gente morando na rua. Afinal, todo mundo que mora na rua tem um parente, certo? Porque eles não levam para sua casa esses indivíduos que por algum motivo chegaram a esta situação? Por que a nossa noção de família é estritamente nuclear? É justamente nessas questões que a África tem muito a nos ajudar. O que é possível desde que façamos a leitura de outra África, desde que o conteúdo não seja esse conteúdo frio que vem sendo levado para a sala de aula, mas que possamos descobrir o porquê muitos africanos, como alardeam os noticiários, vivem com menos de um dólar e ainda não estão todos mortos. Certamente porque existe alguma coisa que nós não conhecemos e essa alguma coisa é o que faz circular bens de primeira importância e torna a vida possível. E isso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nenhum nunca alcançará, afinal tal índice é mais uma ferramenta baseada em um desenvolvimento que em nada dialoga com a realidade africana, marcada pela proteção social, pelo dar, receber e distribuir”, conclui.
É preciso reeducar o olhar sobre a África
Em sua explanação, o professor Acácio Almeida compartilha um conto do escritor costa-marfiniano, Ahmadou Kouroma, de uma sociedade em que o grupo se reconhece por dois elementos importantes: primeiro porque todos andam sem roupas e segundo porque são os melhores lutadores.
Embora o autor não diga, Acácio acredita que esta comunidade esteja localizada na África do Oeste, muito provavelmente no Senegal. Nesta sociedade de guerreiros, tinha um lutador que após inúmeros desafios, venceu a todos da região, até não ter mais quem enfrentar. É quando decide ir para a França que está em guerra com a Alemanha. E chegando lá, dizem que no primeiro dia, segundo dia, terceiro dia pouco acontece, escondidos em suas trincheiras, franceses e alemães pouco fazem. Cansado de tudo aquilo e enfurecido, ele parte para cima dos inimigos e nessa investida, franceses e alemães também partem para o combate. A luta segue por dias e a França se consagra vencedora.
Essa história é a descrição da Primeira Guerra Mundial e esse lutador por ter sido protagonista de um ato heroico é condecorado e recebe uma medalha. E então, surge o problema: ele não usa roupa. Esse é o elemento fundador para discussão entre tradição e modernidade, de acordo com Acácio, “deixar de ser aquilo que eu sou para passar a ser aquilo que o outro é? Para poder expor aquilo que o outro tem da cultura dele? Ou dizer ‘não quero isso e continuarei sendo o que sou’?” Mas como diz Ahmadou, ao finalizar: “era um homem, e os homens adoram medalhas”. Com esta história, Acácio levanta o debate sobre tradição e modernidade, quase sempre tratadas como questões excludentes. Quando na verdade, em sua opinião, “a tradição vive da modernidade, se alimenta da modernidade e por si só é a modernidade”.
Neste contexto, Muryatan Barbosa comenta que lidar com as populações tradicionais como atrasadas é comum porque o olhar ocidental sobre evolução e desenvolvimento é extremamente colonizado – quando a tradição está repleta de tecnologias e modernidade. Ser atrasado ou não, em sua concepção, implica na capacidade que uma sociedade tem de reproduzir a vida com qualidade para seus indivíduos a partir da sua capacidade de adequação ao meio, sem contar com a exploração de outros grupos ou nações para cumprir tal tarefa (e assim as civilizações africanas não eram em nada atrasadas, como diziam os colonizadores).
Acácio traz outro exemplo para pensar sobre o maniqueísmo tão presente nas análises quando o tema são os povos e culturas africanas. Ele comenta da apreciação de dados como a porcentagem de crianças alfabetizadas na África, por exemplo. O cerne central para ele é definir qual a lógica adotada para falar de alfabetização em sociedades da oralidade.
“Não podemos adotar a lógica da escrita como a única lógica possível para a transmissão do conhecimento. Por exemplo, um menino que vai aprender a tecer um Kente. O tecido que sai do ventre do tecelão é a sua palavra criadora, são as reconstruções feitas pela palavra do pré-existente, o tecido é entendido como palavra. Ele não vai apenas conhecer as técnicas do tear, vai também aprender todas as disciplinas: biologia, para ver quais são os tipos de algodão, como se planta; matemática, para identificar a distância entre uma cova e outra para o algodão; linguística, para saber quais são os nomes dos diferentes algodões. É um ensino muito mais completo, presente na manifestação do poder criador como um todo. Como afirma Fábio Leite, a capacidade de comunicação possui essência diversa daquela proposta pela escrita, elemento apenas cultural e estrangeiro à natureza e à dimensão mais profunda do homem.”, ressalta.
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