Em 1970, o ator e diretor Ossie Davis lançava o filme “Rififi no Harlem”,
considerado o primeiro filme do que viria a ser conhecido como
“Blaxpoitation”, um gênero protagonizado, dirigido, roteirizado e
produzido por negros nos Estados Unidos, que teve seu auge nos anos
setenta. Filmes policiais, de gângsters, faroeste e até de terror eram
“sampleados”, nas palavras do crítico de cinema, pesquisador e
especialista no gênero Heitor Augusto.
Heitor
Augusto é crítico de cinema e pesquisador, educador e está preparando
um livro sobre blaxpoitation que deverá ser publicado até o final de
2015. Escreve para a revista Interlúdio e mantém o site http://ursodelata.com/.
“Blaxpoitation significou uma explosão do negro no cinema,
tanto na frente das câmeras, protagonizando suas histórias, nos seus
lugares, como também atrás das câmeras”, afirma o crítico. Para ele,
esse conjunto de filmes, reflete uma radicalização no pensamento negro.
“Eles abriram mão de um discurso conciliador, melhorista, para dizer:
essa é nossa hora, queremos ser protagonistas de nossas histórias. Isso é
black power. Isso é gritar que Black is beautiful (“O negro é lindo”) e Say it loud, i’m black and i’m proud(Grite, sou negro e orgulhoso)”.
Talvez você já tenha ouvido falar do gênero a partir de
suas referências no cinema atual, mais notadamente nas obras de Spike
Lee e Quentin Tarantino (com Jackie Brown e Django Livre). Mas quando
ele apareceu, foi uma revolução nas salas de cinema dos EUA. Pela
primeira vez, o país que teve um dos alicerces de seu cinema no
“Nascimento de uma nação”, de D.W. Griffith, que conta a história do
surgimento da organização de supremacia branca Klu Klux Klan, e na qual
os negros sempre apareciam em papéis secundários ou subalternizados –
quando apareciam – passou a ter parte de sua população representada e
representando nas grandes telas.
Mas tampouco era o único passo: os anos setenta se
forjaram, para o povo negro norte-americano, na sequência das lutas
pelos direitos e civis e os consequentes assassinatos de Malcom X e
Martin Luther King. Os negros tornaram-se sujeitos de direitos, mas
ainda sofriam – e sofrem – com os efeitos de centenas de anos de
segregação racial e escravidão. Enquanto os panteras negras organizavam
as comunidades, Sun Ra criava o afrofuturismo, James Brown cantava o
funk e havia a progressiva afirmação de uma estética negra que, segundo
Augusto, “não pedia licença para existir”. “Existe porque tem orgulho da
negritude, de seu passado e sabem que isso lhes dá força, dá distinção,
lhes dá poder”.
E o que resgatar esse gênero hiperbólico, muitas vezes criticado, tem
a dizer para o Brasil, nosso cinema e aos brasileiros? Para o crítico,
que atualmente trabalha em um livro sobre o tema, o Blaxpoitation ainda
pode comunicar muito aos jovens. “Muitas das situações retratadas nos
filmes, a falta de perspectiva, as drogas, a opressão, a violência
policial, a raiva do sistema. Qualquer moleque negro manja disso. No
“Cleopatra Jones” tem uma cena de esculacho no qual a polícia planta
heroína – de verdade! – em uma pessoa. Quantos meninos não viveram isso?
Quanto isso não ajuda a ilustrar nossa realidade?”, questiona Augusto.
Na última semana, o Portal Aprendiz publicou uma reportagem sobre o projeto “Manifesto Crespo”,
que trabalha com a questão da identidade negra a partir do cabelo. “O
cabelo é uma das partes mais intrincadas do corpo negro. Especificamente
na mulher, ele aparece com muita força: a mulher negra não é referência
nem padrão de beleza na sociedade. Por conta disso, sofremos muita
violência estética e isso gera várias consequências, principalmente no
processo de formação ao longo da vida”, afirmou, então, a trancista
Denna Hill. Para engrossar esse caldo, lembramos do período
cinematográfico que gritou que o negro é lindo e imortalizou o black
power – estilo de cabelo conhecido como “afro”, que no Brasil ganhou a
alcunha do movimento de resistência negra – e pedimos que Heitor Augusto
nos indicasse dez filmes. Confira abaixo:
Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971)
Dirigido, produzido e protagonizado por Melvin Van Peebles,
o filme conta a história de um homem em fuga da opressão da polícia
branca. Com trilha sonora do Earth Wind & Fire, é destacado por
Augusto por ter uma das melhores trilhas do gênero e por ser um “road
movie” com um herói forasteiro e foragido, que “desafia um estado e uma
polícia racista”.
A obra foi considerada por Huey P. Newton, fundador do
movimento Panteras Negras, como fundamental e passou a ser bibliografia
obrigatória para todos os membros do grupo.
Shaft (1971)
“A quintessência do cool”. Assim Heitor Augusto lembra do
filme de 1971, reeditado em 2000 com Samuel L. Jackson como
protagonista. Mas o que é o cool? Para explicá-lo, uma breve digressão
com a ajuda da biografia de Walt Frazier, ex-jogador de basquete.
“O cool é uma qualidade admirada nas comunidades
negras. Ser cool é questão de auto-preservação e sobrevivência. Deve vir
do tempo da escravidão, quando muitas vezes tudo que um negro tinha
para se defender era sua postura. Se ele demonstrasse medo ou raiva, ele
sofreria as consequências. Hoje, o cara respeitado no gueto é aquele
que resiste ao impulso de explodir – que consegue lidar consigo mesmo
numa crise, que consegue sair de uma briga no papo.
O cool também provê uma uma defesa para a comunidade no
gueto. É usada contra adversidades coletivas como, por exemplo, contra
os policiais, que são mal vistos nas comunidades. (…) Algumas pessoas
podem achar que o cool é um afastamento de sentimentos reais. Mas às
vezes, manter o cool é a coisa mais sensível a se fazer”.
Essa atitude, marcada por um distanciamento contemplativo e
elegante, que proliferou também na indústria cultural, é evidente na
cena de abertura do filme, que narra a história de um policial negro,
Shaft, interpretado por Richard Roundtree (veja abaixo).
Superfly (1972)
Superfly narra a história de Youngblood Priest, um
traficante de drogas que quer largar o ramo e mudar de vida. A trilha
sonora, feita por Curtis Mayfield, se tornou mais famosa que o filme,
que segundo Augusto, “tem a coragem de trazer um herói politicamente
incorreto, um sujeito em crise, uma formiguinha cansada de trabalhar
nessa máquina”. Uma curiosidade: A canção “Freddie’s Dead”, da trilha do
filme, foi sampleada por KL Jay na faixa “Mano na porta do bar”, dos
Racionais Mcs.
Cleopatra Jones (1973)
Cleopatra é uma agente anti-tráfico de drogas. Após queimar
um campo de papoula, – numa cena cheia de grandiloquência e estilo –
seu maior inimigo jura acabar com ela. Para Heitor, além de trabalhar
com o feminino, este filme é “significativo na questão do orgulho negro,
de ser negro, do pegar o que te faz negro e transformar isso em algo
positivo”.
Ganja and Hess (1973)
Um arqueólogo (Hess) é mordido por um vampiro e se apaixona
por sua assistente (Ganja). O filme inspirou “Da Sweet Blood of Jesus”,
dirigido por Spike Lee, e apresentado em Cannes no ano passado. O tema
do vampirismo foi considerado pelo crítico Scott Foundas como uma
metáfora da “assimilação negra, imperialismo cultural branco e da
hipocrisia das religiões organizadas”.
“É o melhor filme, em termos de cinema, já feito em
blaxpoitation. É uma subversão dos filmes de vampiro, ao mesmo em que é
um filme reflexivo sobre um autor negro, que pensa as demandas que ele
tem que atender, os desejos dele como autor, os desejos da comunidade
negra e as pressões e condições de produção dentro do cinema americano”,
arremata Heitor Augusto.
The Mack (1973)
O filme de maior renda do gênero, protagonizado por Richard
Pryor. Entendido por seu diretor, Michael Campus, como um comentário
social e não um blaxpoitation, ele retrata a história de um cafetão. “O
herói é um cafetão, mas é um cafetão reflexivo. Apesar de, nas
aparências, fazer uma espécie de glamourização desse universo e de sua
ascensão social, é também bastante crítico nas entrelinhas ao mostrar
que esse processo é frágil, muito frágil”, aponta Augusto.
Black Caesar (1973)
O filme conta a história de Tommy Gibbs, um jovem negro que é
espancado por um policial branco quando criança e, ao se tornar adulto,
vira o chefão da máfia local. Para Heitor Augusto, o filme merece
destaque por “samplear uma mitologia branca de cinema, acessando códigos
tradicionais do filme de gangstêr branco, especificamente o Scarface,
de 1933, no qual os negros não participavam. Há uma apropriação disso em
um ambiente altamente negro”, conclui.Foxy Brown (1974)
Estrelando a diva Pam Grier, que depois viria a aparecer em
Jackie Brown (1997), de Quentin Tarantino, o filme conta a história de
uma mulher que, após ter seu namorado assassinado, se infiltra no mundo
da prostituição para libertar mulheres negras de uma vida de torpor e
escravidão, e conseguir vingança pessoal. “Tal qual Cleopatra Jones, a
protagonista é uma mulher forte e independente, segura e também
consciente do poder que sua negritude traz”, analisa Heitor.
Space in the place (1974)
Sun Ra, o renomado músico de jazz, aterrissa em outro
planeta onde está livre das perseguições do homem branco e resolve fazer
lá, junto com sua orquestra, uma nova civilização. O meio de transporte
para essa mundo? A música. “O filme reverbera por ter no centro do seu
enredo a questão do afrofuturismo, que é uma corrente de pensamento
fundamental para se entender a experiência negra da diáspora. E que
ainda reverbera na cultura negra de hoje: basta ouvir com atenção a obra
de Janelle Monaè”, analisa Heitor.
A estética do afrofuturismo, da qual Sun Ra foi um dos
criadores e expoentes, junto com o Parliament de George Clinton, imagina
a exploração espacial protagonizada por negros, fazendo metáforas da
ascensão – presente no cancioneiro negro desde a escravidão – e da
experiência, de estranhamento e deslocação da diáspora, da abdução de
sua terra-mãe, a África. A capacidade de imaginar artisticamente outras
realidades, não como fuga, mas como possibilidade, está presente na
música do jazzista e encontra sua solução visual nesse filme.
Mandingo (1975)
O tema deste filme apareceu recentemente no Django Livre,
de Quentin Tarantino. Ele conta a história de negros que eram treinados
por um senhor de escravos para lutarem entre si, numa espécie de luta
livre sangrenta. “É um filme audacioso por trabalhar com esterótipos,
arquétipos e fetiches de outra maneira”, afirma o crítico.
Observação: os filmes aqui indicados são de temática adulta.
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