A CASA GRANDE SURTA QUANDO A SENZALA APRENDE A LER..
Na última semana, um coletivo de alunos
negros e que vem realizando diversas intervenções pró cotas raciais na
maior universidade da América Latina, entrou em cena novamente. Dessa
vez, para responder agressões racistas feitas por alunos em pichações
nos banheiros da universidade, campus da USP de Ribeirão Preto.
De cunho bastante agressivo e sempre em
tom de ameaças, as pichações são recorrentes e generalizadas em todas
as universidades onde há cotistas e se observa um expressivo aumento de
alunos negros e/ou não brancos.
Imagine você, caro leitor, enfrentando
uma situação de hostilidade e rejeição escancarada, cotidianamente, em
um ambiente que deixa explícito de todas as maneiras que sua presença
não é bem-vinda. O mundo racista sempre fez questão de deixar claro que
deseja às pessoas negras o pior lugar que a sociedade pode ter.
Assim também é quando sincretizamos a
questão com as classes sociais. Mas ainda assim, pessoas negras
continuam em desvantagem, pois representamos o maior contingente entre
as classes C e D. Mas há quem afirme que o problema do Brasil é de
classe, ignorando completamente que a raça informa classe social e
vice-versa.
Imagine você tendo o fardo de
protagonizar uma guinada histórica nas estatísticas, que sempre
denunciaram a situação abismal de qualidade de vida entre pessoas
brancas e não brancas. Imagine ter a pressão de reverter o passado
histórico de exclusão e falta de oportunidades através desse ingresso na
universidade. É conviver com as cobranças da própria população negra,
porque afinal os poucos serão exemplos de que é possível reescrever a
história dos negros através dessa possibilidade que as cotas abrem.
Se o Brasil não fosse um país racista,
como tenta de todas as maneiras dizer para si mesmo, cotas não seriam
motivo de discussão. Seria fato consumado. Mas a segunda nação mais
negra do mundo deve mesmo sentir vergonha da maneira covarde com que
trata os seus filhos.
Não é possível que as pessoas brancas
acreditem que não tem nada a ver com todo o processo escravagista que se
deu por aqui. Pois quando se fala em imigrantes, eles facilmente
reconhecem a ancestralidade da origem de seus bens materiais e tratam de
esquecer de toda a política de favorecimento pela qual esses
estrangeiros formam submetidos.
Não é possível que pensam que com os
escravizados foi da mesma maneira. Isso seria mais que alienação, seria
debilidade intelectual. É apenas oportuno que não se lembrem, pois de
outro modo não poderiam refutar o “vocês nos devem até a alma”, verdade
citada no discurso das alunas e que teria chocado a todos os
inocentes(?) que ali estavam. Todos reclamam, se sentem pessoalmente
ofendidos por essa afirmação e instantaneamente chamam pessoas negras de
“vitimista”. Inversão de valores? Não, cinismo mesmo. Pessoas negras
não são vitimistas; pessoas brancas é que são, porque choram por medo de
perder privilégios mais que consolidados. Tanto que não querem nem ao
menos, repartir.
A questão é, esse mérito próprio que
gostam de alardear com pompa, circunstância e cinismo, já que existe,
não seria motivo o bastante para deixar nossos alunos uspianos
sossegados e garantir uma atitude generosa por parte deles, pois afinal,
eles supostamente têm o dom de manterem seus privilégios sozinhos.
Nesse caso, fica no ar a dúvida: por que tanta oposição para garantir um
direito básico às populações “naturalmente” inferiores (segundo
informações forjadas pela população branca)? Ou será que esse conceito
da naturalidade de nossa inferioridade é usado apenas quando convém a
branquitude elitizada? No fundo, eles temeriam que descobríssemos uma
capacidade sistematicamente negligenciada em benefício da supremacia
branca?
Porque as medidas afirmativas despertam
a fúria das pessoas brancas? Porque e elite teme a igualdade sócio
racial? Mais que temerária, porque ela sempre é hábil em sonegar os
caminhos que levam a ela, como trabalho e estudo?
Ou será que a presença de pessoas
historicamente marginalizadas e segregadas representa uma ameaça que,
devido aos prováveis resultados benéficos, poderia afirmar na prática a
ineficiência do conceito de meritocracia, uma vez que prova que ensinar a
pescar é fundamental, desde que se tenha a vara, a isca, o anzol e o
pesqueiro (de preferência gratuito)?
A revolta das pessoas que já têm seu
lugar ao sol garantido as custas da mobilização trabalhista de outros é
tanta, que manifestações diretas e pessoais são proferidas via redes
sociais, usando argumentos tóxicos, que tentam a qualquer custo
desqualificar moralmente as pessoas negras que se levantam e pleiteiam
os direitos que estes alunos que ali estão já possuem.
As alunas do Coletivo Negro da USP
foram duramente atacadas e expostas em uma determinada página que se
intitula “liberal” após um vídeo contendo uma encenação de repúdio
contra as fotos das pichações que se espalharam na internet.
Segundo a lógica vazia dessa elite
vergonhosa e nem um pouco envergonhada, o fato da estudante ter tido
acesso a um colégio particular de alto padrão a exclui da incumbência de
lutar por direitos iguais para outros negros que não tiveram a mesma
sorte que ela e que, por isso, não conseguem ter acesso à universidade.
Eles defendem essa ideia porque vivem de acordo com essa ideologia, que
exclui deles a responsabilidade social de engrossar o coro e fazer
pressão para que as oportunidades sejam igualitárias. Eles lutam de
todas as formas para manter seus privilégios.
Ora, se cotas são, segundo eles, uma
medida que agrava os atritos sociais e “aumentam” o racismo, porque essa
elite branca e bem-nascida (maioria esmagadora nesses espaços) não se
vale dos mesmos critérios altruístas quando se fala em cursinhos
pré-vestibulares, que quase todos eles frequentam antes de garantirem
suas vagas em UNIVERSIDADES PÚBLICAS? Essa modalidade de cota não seria
também um agravante das desigualdades sociais, visto que quem paga um
suporte desse nível aos estudos é, a priori, quem tem dinheiro para
permanecer nas universidades particulares. Já não basta cursarem as
melhores escolas particulares durante toda a vida, e ainda precisam
dessa “medida afirmativa” que custa caro, tanto quanto a mensalidade do
suposto colégio da estudante negra?
Alguns vão levantar a existência de
cursinhos gratuitos direcionados aos alunos de baixa renda. Mas esses
não têm a mesma aderência e nem o mesmo suporte que aqueles mais caros e
famosos. E, ainda por cima, são frequentados em sua maioria por
estudantes que intercalam os estudos com a jornada de 40 horas semanais
de trabalho para custear as outras necessidades que a vida solicita. Já
no caso dos nossos heróis meritocráticos, são invariavelmente garantidas
pelos pais, permitindo uma dedicação integral aos estudos.
Temos que ressaltar que toda essa
avalanche de ofensas que intimidam alunos cotistas nas universidades
públicas e particulares vem de um país que cria hashtags diversificadas
(e porque não dizer, totalmente caricatas) de apoio às vítimas de
racismo. Esse povo brasileiro que se diz indignado quando presencia
atitudes racistas de outrem, mas que não se envergonha dos 15 mil
compartilhamentos seguidos de cerca 1000 comentários, altamente
ofensivos, que facilmente poderiam ser enquadrados nos crimes de racismo
e injúria racial.
A elite que se prepara para representar
profissionalmente os setores mais altos da sociedade não se dá nem ao
trabalho de pelo menos estudar sobre o assunto em questão para refutar
de maneira séria ou pelo menos respeitável. Pergunte a um deles o nome
de algum intelectual e/ou obra escrita que aborda o tema em questão
(racismo) e eles, quando muito, irão citar alguma bobagem postada em
rede social, falsamente atribuída a Mandela ou Martin Luther King, os
preferidos por conta de uma suposta passividade frente ao racismo.
Eles reclamam do conteúdo agressivo do
discurso da estudante, que usa palavras de baixo calão e termina o
discurso/encenação pleiteando a dívida histórica que a branquitude
mantém com as pessoas negras por toda a América. Mas mantém um silêncio
sorridente diante das pichações ameaçadoras, pois, afinal, elas
expressam o pensamento da maioria. Essa elite branca e bem nascida
também não se sente sensibilizada com as manifestações de pedofilia,
racismo, homofobia e afins, que estão livremente na internet. Não, isso
não incomoda ninguém.
Eles apelam para a moralidade, na mais
hilária demonstração de hipocrisia, mas se calam frente aos episódios de
estupro nos diversos campus da universidade, punidos com reles
suspensão dos criminosos. E esses mesmos baluartes da moralidade que se
chocaram com os palavrões proferidos pelas alunas provavelmente
presenciam coisas piores nas conhecidas e lendárias festas organizadas
por eles, que não são nem de longe pautadas no recato e muito menos no
decoro, conforme as regras sociais que eles invocam com essas
reclamações típicas de quem não tem argumento devidamente fundamentado,
frente ao discurso/encenação feito.
Diante deste triste episódio, podemos
esperar que o futuro da nação, que está sendo cunhado nos bancos dessas
universidades públicas e particulares será de uma hipocrisia e
ineficiência proporcional a quantidade de pessoas brancas, covardes e
preconceituosas que a frequentam.
* Joice Berth é Arquiteta
e Urbanista pela Universidade Nove de Julho e Pós graduada em Direito
Urbanístico pela PUC-MG. Feminista Interseccional Negra e integrante do
Coletivo Imprensa Feminista
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