Centro de Referências em Educação Integral
Quando pequenas, é comum as crianças se divertirem imaginando o que serão quando “grandes”. Brincam de médicas enquanto examinam uma boneca. Com as mãos no volante imaginário, pensam ser motoristas pelas cidades. Segurando um lápis e com uma parede à frente, as crianças podem se transformar em professoras diante dos alunos-ursos de pelúcia.
Os sonhos são dos mais diversos e podem vir do mundo da imaginação ou das vivências de seu cotidiano – às vezes revelando a crueldade da realidade. Enquanto duas crianças brincavam em uma escola de educação infantil na zona sul de São Paulo, no bairro Jardim Maria Luiza, uma professora acompanhava de perto e escutava o que diziam. Surpresa, a educadora ouviu uma garota de três anos dizer: “quando crescer, eu quero ser branca”.
A surpresa da professora logo se tornou questionamento e reflexão partilhados com outros profissionais do Centro de Educação Infantil (CEI) Onadyr Marcondes. Quais experiências esta menina teve para se sentir assim? O que ela vivenciou que trouxesse uma negação da sua etnia? Quais estímulos ela recebeu nestes apenas três anos de vida para pensar que ser branca era melhor que ser negra?
A escola não tinha mais como não escutar e observar com atenção o contexto de seus alunos. A desvalorização do negro e da cultura afro-brasileira saltou aos olhos dos educadores que passaram a escutar a “fala” dos pequenos, observando suas atitudes. Como, por exemplo, o caso de crianças que não brincavam com as bonecas negras e preferiam as brancas, mesmo que estas estivessem quebradas. Outro tema que chamou a atenção foi o sexismo e a questão de gênero. Havia casos, entre outros, de garotas reclamando que os meninos não as deixavam jogar futebol “porque não é coisa para menina”.
A escuta atenta das crianças revelou muito do contexto em que viviam. Em uma aula sobre a chuva, a professora perguntou “quem aqui gosta da chuva?”. E quase todos os alunos disseram que sim, contando o porquê. Depois de um tempo, um garoto levantou a mão e disse que não gostava de quando chovia. O porquê? “Porque quando chove, a água entra na minha casa.”
Além do processo de observação, a escola decidiu conhecer de perto a realidade de seus alunos e passou a realizar uma caminhada anual pelo bairro. Após um aviso e junto às lideranças comunitárias, todos os funcionários da escola – professores, merendeiras, vigilantes e da limpeza – caminharam pelas ruas, vielas e becos percorridos pelas crianças e suas famílias e conheceram suas casas e seu território. A caminhada se repete há oito anos, com a comunidade cada vez mais receptiva e com os educadores enxergando esse exercício como um momento de colher matéria-prima para o seu trabalho. “Passamos a pensar as demandas das crianças e o que a escola pode oferecer”, relata a assistente de direção da unidade, Jacilene Ferreira de Lima.
Da constatação à ação
A partir das necessidades das crianças e da comunidade, a instituição tomou como prioritário no projeto político pedagógico tratar as temáticas das igualdades de gênero e racial. Neste processo, a escola se assumiu como um espaço de construção de conhecimento e como um ator na busca pela justiça social. “Temos que pensar qual conhecimento é necessário para a vida da criança, como para aquela que vê o córrego entrar em sua casa”, defende a diretora da Onadyr, Maristela Bayer Nepomuceno.
A escola passou a introduzir estas temáticas nas atividades realizadas junto às crianças ao mesmo tempo em que começou a realizar formações com todos os funcionários da escola. Este processo iniciado há oito anos, está em constante construção e aprimoramento.
Como o público do CEI são alunos pequenos – de bebês de sete meses até crianças de cinco anos – é preciso pensar em uma abordagem específica para apresentar as temáticas. “Valorizamos o momento das brincadeiras e levamos uma intencionalidade pedagógica a ele”, explica Jacilene.
Por meio das Rodas de Histórias, narrativas afro-brasileiras, que valorizam a cultura negra ou que discutem a igualdade, racial ou de gênero, são apresentadas às crianças. A escola também se vale do teatro, da poesia, da música, das danças, da culinária e das artes plásticas para criar um universo de pluralidade e enaltecer as diferenças. A instituição também promove ações de valorização da diversidade, como o desfile das belezas brasileiras.
No entanto, não há um currículo ou atividades já determinadas e as questões vão sendo debatidas à medida que vão surgindo. “Há uma problematização de cada profissional a partir do que acontece na sala de aula”, relata a assistente. Assim, a partir de uma fala de um aluno de que “meninos não dançam balé”, a escola fez atividades mostrando o trabalho de grandes bailarinos, realizou oficinas de danças e uma apresentação em que todos participaram. Em outro caso, enquanto as meninas eram maquiadas para um desfile, um menino disse que também queria. Mesmo com o temor do que os pais poderiam pensar se a criança chegasse maquiada em casa, a decisão da professora junto à direção foi de deixar o garoto brincar com a maquiagem como desejasse.
Repensar constante e conjunto
A realização destas atividades demanda espaço de formação e reflexões constantes dos educadores. A tarefa se torna ainda mais necessária diante da alta rotatividade dos professores e pelo fato de que a formação acadêmica dos docentes, em geral, não leva em consideração tais temáticas e debates. “Ninguém dá o que não tem”, afirma Jacilene. “É um olhar que deve ser construído”.
De terça à quinta-feira, ao final do dia, a equipe da escola se reúne para um momento de debate. Como todos são considerados educadores, todos participam do espaço: professores, merendeiras, vigilantes e as equipes de limpeza e do administrativo. “Temos essa formação para fazer uma reflexão e não naturalizarmos as práticas”, explica a coordenadora pedagógica, Joyce Anne Mol Semmler. Além disso, são realizadas formações externas oferecidas pela secretaria municipal e também com convidados que são levados aos espaços da escola.
A instituição tem clareza de que é necessário envolver as famílias das crianças para que o projeto político pedagógico tenha êxito. “Escola boa se faz junto à comunidade”, defende Joyce. O CEI aproveita os encontros mensais do Conselho para debater junto às famílias os temas que a instituição trabalha. Assim, a escola tenta quebrar estereótipos como o de que “homem não chora”, de que há brinquedos de menina e de menino, ou de que a responsabilidade da família é apenas da mulher. A cada início de ano também há um momento de acolhimento dos pais, apresentando a agenda e proposta da instituição.
Aliás, o debate sobre o que é a família é forte na escola: entendendo que essas não são definidas apenas como um pai, uma mãe e os filhos, a escola assumiu essa realidade e a trouxe para o debate. Ao invés dos dias dos pais e das mães, a escola promove o dia da figura feminina e o da masculina. Assim, os alunos levam à instituição aqueles que representam essa figura: avós, irmãos, tios, padrinhos, ou quem quer que seja. Esses dias comemorativos são oportunidades para questionar esses papeis e seus significados. A CEI também optou por não comemorar datas comerciais ou religiosas, promovendo mostras culturais ou festas temáticas para que as famílias frequentem. A escolha possibilitou que famílias evangélicas, que antes não se sentiam à vontade nas festas católicas, passassem a frequentar as comemorações no espaço.
“Neguinha, não. Meu nome é Shirley”...
Os impactos das ações em prol da igualdade são sentidos diariamente nestes oito anos de ações do CEI. As famílias e os educadores percebem um aumento na autoestima das crianças e na aceitação e valorização de sua condição. Em uma reunião de conselho de pais, uma mãe relatou que a filha de três anos foi chamada de “neguinha” pelo motorista do transporte escolar e respondeu prontamente: “Eu não sou neguinha. O meu nome é Shirley”. Educadores relatam que as crianças passaram a valorizar as bonecas negras, achando-as bonitas e até se identificando com elas. Até a arrumação das meninas mudou e hoje os cachos soltos são comuns. “Antes as meninas vinham só de trança ou cabelo preso e as mães falavam que era por conta de piolho. Mas a gente sabe que tem uma questão de preconceito por trás”, conta a diretora Maristela.
As discussões sobre gênero também dão frutos. Talvez a mudança mais representativa seja o crescimento do número de homens que participam dos conselhos e das atividades promovidas pela escola. “Antes não vinham”, relembra Joyce. Os educadores também relatam caso de meninos que dizem que podem sim brincar de boneca e de familiares que reconhecem o quão opressor é dizer que “menino não pode chorar”.
Por Juliana Sada, do Quando pequenas, é comum as crianças se divertirem imaginando o que serão quando “grandes”. Brincam de médicas enquanto examinam uma boneca. Com as mãos no volante imaginário, pensam ser motoristas pelas cidades. Segurando um lápis e com uma parede à frente, as crianças podem se transformar em professoras diante dos alunos-ursos de pelúcia.
Os sonhos são dos mais diversos e podem vir do mundo da imaginação ou das vivências de seu cotidiano – às vezes revelando a crueldade da realidade. Enquanto duas crianças brincavam em uma escola de educação infantil na zona sul de São Paulo, no bairro Jardim Maria Luiza, uma professora acompanhava de perto e escutava o que diziam. Surpresa, a educadora ouviu uma garota de três anos dizer: “quando crescer, eu quero ser branca”.
A surpresa da professora logo se tornou questionamento e reflexão partilhados com outros profissionais do Centro de Educação Infantil (CEI) Onadyr Marcondes. Quais experiências esta menina teve para se sentir assim? O que ela vivenciou que trouxesse uma negação da sua etnia? Quais estímulos ela recebeu nestes apenas três anos de vida para pensar que ser branca era melhor que ser negra?
A escola não tinha mais como não escutar e observar com atenção o contexto de seus alunos. A desvalorização do negro e da cultura afro-brasileira saltou aos olhos dos educadores que passaram a escutar a “fala” dos pequenos, observando suas atitudes. Como, por exemplo, o caso de crianças que não brincavam com as bonecas negras e preferiam as brancas, mesmo que estas estivessem quebradas. Outro tema que chamou a atenção foi o sexismo e a questão de gênero. Havia casos, entre outros, de garotas reclamando que os meninos não as deixavam jogar futebol “porque não é coisa para menina”.
A escuta atenta das crianças revelou muito do contexto em que viviam. Em uma aula sobre a chuva, a professora perguntou “quem aqui gosta da chuva?”. E quase todos os alunos disseram que sim, contando o porquê. Depois de um tempo, um garoto levantou a mão e disse que não gostava de quando chovia. O porquê? “Porque quando chove, a água entra na minha casa.”
Além do processo de observação, a escola decidiu conhecer de perto a realidade de seus alunos e passou a realizar uma caminhada anual pelo bairro. Após um aviso e junto às lideranças comunitárias, todos os funcionários da escola – professores, merendeiras, vigilantes e da limpeza – caminharam pelas ruas, vielas e becos percorridos pelas crianças e suas famílias e conheceram suas casas e seu território. A caminhada se repete há oito anos, com a comunidade cada vez mais receptiva e com os educadores enxergando esse exercício como um momento de colher matéria-prima para o seu trabalho. “Passamos a pensar as demandas das crianças e o que a escola pode oferecer”, relata a assistente de direção da unidade, Jacilene Ferreira de Lima.
Da constatação à ação
A partir das necessidades das crianças e da comunidade, a instituição tomou como prioritário no projeto político pedagógico tratar as temáticas das igualdades de gênero e racial. Neste processo, a escola se assumiu como um espaço de construção de conhecimento e como um ator na busca pela justiça social. “Temos que pensar qual conhecimento é necessário para a vida da criança, como para aquela que vê o córrego entrar em sua casa”, defende a diretora da Onadyr, Maristela Bayer Nepomuceno.
A escola passou a introduzir estas temáticas nas atividades realizadas junto às crianças ao mesmo tempo em que começou a realizar formações com todos os funcionários da escola. Este processo iniciado há oito anos, está em constante construção e aprimoramento.
Como o público do CEI são alunos pequenos – de bebês de sete meses até crianças de cinco anos – é preciso pensar em uma abordagem específica para apresentar as temáticas. “Valorizamos o momento das brincadeiras e levamos uma intencionalidade pedagógica a ele”, explica Jacilene.
Por meio das Rodas de Histórias, narrativas afro-brasileiras, que valorizam a cultura negra ou que discutem a igualdade, racial ou de gênero, são apresentadas às crianças. A escola também se vale do teatro, da poesia, da música, das danças, da culinária e das artes plásticas para criar um universo de pluralidade e enaltecer as diferenças. A instituição também promove ações de valorização da diversidade, como o desfile das belezas brasileiras.
No entanto, não há um currículo ou atividades já determinadas e as questões vão sendo debatidas à medida que vão surgindo. “Há uma problematização de cada profissional a partir do que acontece na sala de aula”, relata a assistente. Assim, a partir de uma fala de um aluno de que “meninos não dançam balé”, a escola fez atividades mostrando o trabalho de grandes bailarinos, realizou oficinas de danças e uma apresentação em que todos participaram. Em outro caso, enquanto as meninas eram maquiadas para um desfile, um menino disse que também queria. Mesmo com o temor do que os pais poderiam pensar se a criança chegasse maquiada em casa, a decisão da professora junto à direção foi de deixar o garoto brincar com a maquiagem como desejasse.
Repensar constante e conjunto
A realização destas atividades demanda espaço de formação e reflexões constantes dos educadores. A tarefa se torna ainda mais necessária diante da alta rotatividade dos professores e pelo fato de que a formação acadêmica dos docentes, em geral, não leva em consideração tais temáticas e debates. “Ninguém dá o que não tem”, afirma Jacilene. “É um olhar que deve ser construído”.
De terça à quinta-feira, ao final do dia, a equipe da escola se reúne para um momento de debate. Como todos são considerados educadores, todos participam do espaço: professores, merendeiras, vigilantes e as equipes de limpeza e do administrativo. “Temos essa formação para fazer uma reflexão e não naturalizarmos as práticas”, explica a coordenadora pedagógica, Joyce Anne Mol Semmler. Além disso, são realizadas formações externas oferecidas pela secretaria municipal e também com convidados que são levados aos espaços da escola.
A instituição tem clareza de que é necessário envolver as famílias das crianças para que o projeto político pedagógico tenha êxito. “Escola boa se faz junto à comunidade”, defende Joyce. O CEI aproveita os encontros mensais do Conselho para debater junto às famílias os temas que a instituição trabalha. Assim, a escola tenta quebrar estereótipos como o de que “homem não chora”, de que há brinquedos de menina e de menino, ou de que a responsabilidade da família é apenas da mulher. A cada início de ano também há um momento de acolhimento dos pais, apresentando a agenda e proposta da instituição.
Aliás, o debate sobre o que é a família é forte na escola: entendendo que essas não são definidas apenas como um pai, uma mãe e os filhos, a escola assumiu essa realidade e a trouxe para o debate. Ao invés dos dias dos pais e das mães, a escola promove o dia da figura feminina e o da masculina. Assim, os alunos levam à instituição aqueles que representam essa figura: avós, irmãos, tios, padrinhos, ou quem quer que seja. Esses dias comemorativos são oportunidades para questionar esses papeis e seus significados. A CEI também optou por não comemorar datas comerciais ou religiosas, promovendo mostras culturais ou festas temáticas para que as famílias frequentem. A escolha possibilitou que famílias evangélicas, que antes não se sentiam à vontade nas festas católicas, passassem a frequentar as comemorações no espaço.
“Neguinha, não. Meu nome é Shirley”...
Os impactos das ações em prol da igualdade são sentidos diariamente nestes oito anos de ações do CEI. As famílias e os educadores percebem um aumento na autoestima das crianças e na aceitação e valorização de sua condição. Em uma reunião de conselho de pais, uma mãe relatou que a filha de três anos foi chamada de “neguinha” pelo motorista do transporte escolar e respondeu prontamente: “Eu não sou neguinha. O meu nome é Shirley”. Educadores relatam que as crianças passaram a valorizar as bonecas negras, achando-as bonitas e até se identificando com elas. Até a arrumação das meninas mudou e hoje os cachos soltos são comuns. “Antes as meninas vinham só de trança ou cabelo preso e as mães falavam que era por conta de piolho. Mas a gente sabe que tem uma questão de preconceito por trás”, conta a diretora Maristela.
As discussões sobre gênero também dão frutos. Talvez a mudança mais representativa seja o crescimento do número de homens que participam dos conselhos e das atividades promovidas pela escola. “Antes não vinham”, relembra Joyce. Os educadores também relatam caso de meninos que dizem que podem sim brincar de boneca e de familiares que reconhecem o quão opressor é dizer que “menino não pode chorar”.
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