sábado, 4 de junho de 2011
A ação comunicativa em Habermas e a polêmica atual do humor irresponsável
O
mundo contemporâneo apresenta uma série de mazelas, no que concerne aos
mais distintos assuntos. Desde a pobreza material, ao desrespeito e
intolerância frente ao outro, diferente dos padrões, convivemos com
dificuldade em estabelecer, na prática, atitudes interessantes para uma
vivência coletiva menos desagradável. No Brasil, uma pequena polêmica
tem sido despertada por alguns setores, qual seja, a questão dos limites
do humor e a rejeição à comédia “politicamente correta”.
Trata-se
das consequências que determinados humoristas alcançam com suas sátiras
destinadas a grupos envolvidos em problemas sociais e/ou individuais.
Dito de outra maneira, os defensores da liberdade absoluta para as
piadas sentem-se censurados quando são interpelados por pessoas ou
organizações que preconizam mais cuidado ao se falar em temáticas como a
discriminação racial, doenças, machismo, xenofobia, etc. Iluminemos a
indagação: há a necessidade de se colocar obstáculos ao humor? Devemos
aceitar todas as formas de comédia, mesmo que elas insultem ou ataquem
indivíduos/coletivos já subjugados no cotidiano? Não pretendemos
oferecer respostas fechadas, sobretudo por esses consistirem em
questionamentos bastante complexos, que podem resvalar em caminhos
obscuros. Uma vez salientada nossa pretensão sociológica, ainda que não
restritiva, cintila interessante adicionar algumas contribuições de
Jürgen Habermas acerca da modernidade e suas caracterizações, mas
principalmente pensar com atenção nas proposições relacionadas à sua
teoria da ação comunicativa. Com isso não queremos aplicar num gesto
mecânico a teoria habermasiana, e sim trazer subsídios ao debate em
voga. O filósofo e sociólogo representa uma espécie de segunda linhagem
da chamada Escola de Frankfurt, que aglutinou pensadores importantes
como Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Mark Horkheimer.
Dela se consolidou a teoria crítica, que tem como eixo central a
crítica à sociedade industrial moderna.
Habermas
observa no capitalismo tardio vulnerabilidades sob o ponto de vista da
racionalidade, da motivação e da legitimação. O trabalho, calcado no
domínio da natureza para a satisfação humana, congrega uma racionalidade
similar a da ciência e da técnica, uma racionalidade que se orienta
pela organização e escolha adequada de meios para realizar determinados
fins. Entretanto, Habermas demonstra a ideia de que a modernidade
impulsionou não somente a racionalidade instrumental, norteada pela
eficiência, pelo agir estratégico, à medida que ela comporta a razão
comunicativa, vinculada ao entendimento, embora as esferas de decisão
nas quais a razão comunicativa deve prevalecer estejam penetradas pela
racionalidade instrumental.
A racionalidade
instrumental, na trajetória de ampliação de seu campo de atuação,
substituiu de forma crescente o espaço da interação comunicativa que
havia anteriormente no âmbito das decisões práticas que diziam respeito à
comunidade. Dessa forma, caem por terra as antigas formas ideológicas
de legitimação das relações sociais de poder. Com esse tipo de
racionalidade não se questiona se as normas institucionais vigentes são
justas ou não, mas somente se são eficazes, isto é, se os meios são
adequados aos fins propostos, ficando a questão dos valores éticos e
políticos submetida a interesses instrumentais e reduzida à discussão de
problemas técnicos (GONÇALVES, 1999: 130).
O
pensador alemão encontra em fundamentos teóricos interdisciplinares a
tentativa de produzir uma teoria social reconstrutiva, aproximando a
sociologia (Weber, Durkheim, Mead e Parsons), a filosofia (Kant, Husserl
e Schutz), a linguística (Austine e Searle) e a psicologia
estrutural-genética (Piaget e Kohlberg). A saber, a interação social tem
a potencialidade de uma interação dialógica, comunicativa, mas a
colonização da racionalidade instrumental no espectro da ação humana
interativa, ao gerar um enfraquecimento da ação comunicativa e ao
diminuí-la à sua própria estrutura de ação, formulou nos sujeitos
contemporâneos formas individualistas de agir, pensar e sentir, que
sustentam alguns dos percalços das sociedades modernas. Ele afirma que
[…]
en realidad las manifestaciones comunicativas están insertas a un mismo
tiempo en diversas relaciones con el mundo. La acción comunicativa se
basa en un proceso cooperativo de interpretación en que los
participantes se refieren simultáneamente a algo en el mundo objetivo,
en el mundo social y en el mundo subjetivo […] Hablantes y oyentes
emplean el sistema de referencia que constituyen los tres mundos como
marco de interpretación dentro del cual elaboran las definiciones
comunes de su situación de acción. […] Entendimiento (Verständigung)
significa la “obtención de un acuerdo” (Einigung) entre los
participantes en la comunicación acerca de la validez de una emisión;
acuerdo (Einverständnis), el reconocimiento intersubjetivo de la
pretensión de validez que el hablante vincula a ella (1999: 171).
Nas
sociedades modernas, está disposta uma tensão entre o mundo sistêmico e
o mundo da vida (Lebenswelt). Os sistemas são compostos pelos
subsistemas político e econômico, o Estado e o mercado, respectivamente,
e as formas de coordenação da ação ali presentes condizem com a
integração sistêmica e a razão instrumental e estratégica. No mundo da
vida, por seu prisma, as ações são coordenadas pela integração social e
pela razão comunicativa, sendo um processo liguisticamente mediado, uma
realidade elaborada pelos atores desde suas experiências intersubjetivas
que ocorrem nas situações face-a-face. É o mundo da vida que pode ser
considerado o pano de fundo da teoria da ação comunicativa, porquanto
nele os atos de fala, isto é, a definição de que um falante realiza um
ato enquanto fala, adquire relevo e incorpora a noção de que um ato
performativo carrega consigo o conteúdo comunicativo do indivíduo que
possui somente o objetivo do entendimento.
A
esfera pública é mencionada como um espaço fundamental, que engendra
“uma estrutura comunicacional do agir comunicativo orientado pelo
entendimento” (HABERMAS, 1997: 92). Nesse sentido, o nível de
efetivação, ou mesmo da qualidade da esfera pública, correlaciona-se com
a quantidade e a qualidade dos argumentos expostos. É possível trazer
ramificações de esfera pública nas sociedades contemporâneas, como a
episódica (bares, ruas, elevadores), da presença organizada (reuniões,
congressos) e a abstrata, feita através da mídia. A esfera pública
possibilita a exposição argumentativa e sem acesso a ela a possibilidade
de cidadania se vê reduzida a quase nada.
Não
obstante, os rumos tomados pela ciência social no capitalismo avançado
são problematizados pelo autor, ao passo que a passagem do agir
estratégico para o agir comunicativo dependeria de uma compreensão
aprofundada não só dos resultados nefastos da aliança
positivismo-funcionalismo com a dominação de classes, mas do emaranhado
entre linguagem e realidade social e política.
A
ciência e a política têm de traduzir-se, em última análise, em atos de
fala, caracterizando um complexo processo de emissão-recepção no
contexto de intersubjetividade lingüística. […] Para Habermas, tal
possibilidade depende de um amadurecimento ético-racional que perceba o
papel central que a comunicação lingüística desempenha ao mesmo tempo
como contexto e instrumento de transformação da realidade humana (MONTEIRO, 1995: 179/180).
Jürgen
Habermas propõe que, por meio da ação comunicativa, seja possível
enfrentar uma situação na qual os discursos presentes, sem serem
arbitrários, se dirijam para um consenso que não se configure ilusório. A
rigor, fala-se numa situação linguística ideal, cuja comunicação não
esteja afetada por efeitos externos contingentes, nem por derivações da
estrutura da comunicação. “Ela supõe que, em princípio, todos os
interessados possam participar do discurso e que todos eles tenham
oportunidades idênticas de argumentar, dentro dos sistemas conceituais
existentes ou transcendendo-os, e chances simétricas de fazer e refutar
afirmações” (FREITAG, 1990: 19). O Estado democrático de direito precisa
estar aberto às tematizações da esfera pública, sua legitimidade tem de
passar pelo crivo das discussões publicizadas.
Naquilo
que se destaca como possível para a transformação dos graves problemas
da humanidade no capitalismo contemporâneo, Habermas enxerga o resgate
de uma racionalidade comunicativa nas zonas de decisão que abrangem a
interação social tomadas pela racionalidade instrumental. Considerando
que o ser humano não reage tão somente aos estímulos das situações que
vivencia, porém dá um sentido às suas ações e pela linguagem se capacita
a comunicar sua interioridade, Habermas deposita no diálogo a esperança
de que retomemos nosso papel de sujeitos (GONÇALVES, 1999).
Tanta
ênfase no agir comunicativo, na percepção de que a fala não é
desprovida de um ato, ou seja, falar é enunciar, nos faz refletir sobre a
liberdade irrestrita dos meios de comunicação de massa, mas também
sobre as simples piadas desferidas no mundo da vida. Se bem que o temor
da censura ainda permaneça atual, estabelecer critérios para um humor
que versa pejorativamente acerca de questões que não são engraçadas para
aqueles que nelas estão envolvidos não indica repressão aos
comediantes.
Convém, quem sabe, cercar-se não de
correções estéreis sob a égide da moralidade, e sim de atitudes e
discursos que busquem o consenso, a inclusão, pautada numa ética
universalista de justiça (se é que essa pode ser concebida nas
sociedades ocidentais capitalistas contemporâneas), destituindo o
apontamento compulsório dos defeitos, aspectos ou diferenças alheias. Na
ausência disso enveredam os que apregoam um céu estrelado para o humor
irresponsável, uma liberdade completa, como se ele não fosse imbuído de
um arsenal de preconceitos, julgamentos e atribuições sociais tão
evidentes aos que não fecham os olhos para a realidade nem sempre
divertida.
Bernardo Caprara
Sociólogo e Jornalista
Sociólogo e Jornalista
REFERÊNCIAS
FREITAG, Bárbara. Habermas (Coleção Grandes Pensadores). São Paulo: Ática, 1990.
GONÇALVES,
Maria Augusta Salin Gonçalves. Teoria da ação comunicativa de Habermas:
Possibilidades de uma ação comunicativa de cunho interdisciplinar na
escola. Revista Educação & Sociedade, ano XX, número 66, Abril/1999.
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. (Vol. II). Madrid: Taurus, 1999.
______________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
MONTEIRO, Luiz G. M. Jürgen Habermas: Estado, Conhecimento, Dominação e Ação Comunicativa. In: Neomarxismo: Indivíduo e Sociedade. Florianópolis: Edusc, 1995http://www.sociologiapopular.com/2011/06/acao-comunicativa-em-habermas-e.html
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